O dia era 18 de março, um dia antes do meu aniversário de 27 anos. Eu morava em Madrid e como não tinha me acostumado aos horários espanhóis e os achado um tanto fechados e preconceituosos contra os sul-americanos, resolvi aceitar a oferta de trabalho de uma italiana para vir trabalhar na Alemanha numa sorveteria por uma temporada.
Todo o contato foi feito por telefone. Naquela época não havia internet em todos os lugares para obter informações. A italiana me falou que a sorveteria era em Hamburgo. Pois bem, eu comprei a passagem, e nesse dia há 20 anos atrás aterrisei em Hamburgo sem conhecer ninguém na Alemanha, sem falar alemão e sem saber o que estaria me esperando.
No aeroporto um taxista estava me esperando com uma plaquinha com o meu nome. Entrei no carro e ele começou a andar, sempre saindo de Hamburgo. Lá pelas tantas eu perguntei a ele: “a sorveteria não é na cidade?” ele respondeu num inglês muito precário: “no, beach.” Praia? Como assim praia? Tem praia na Alemanha? Eu estava confusa, mas não tinha outra opção a não ser seguir em frente.
Chegamos numa praia chamada Timmendorfer Strand. Fazia frio e o dia estava nublado. A praia estava deserta, as lojas estavam fechadas e só a sorveteria estava aberta. Eu fiquei alojada no apartamento em que todos os funcionários da sorveteria moravam.
No dia seguinte, meu aniversário, a italiana me deu o dia de folga para eu arrumar as minhas coisas. Saí atrás de um local com internet para dar notícias para minha família e amigos, já que o meu celular era pré-pago da Espanha e todas as trocas de mensagens ou ligações eram pagas. O meu crédito acabou já no primeiro dia e eu não tinha mais como carregá-lo.
Em Timmerdorfer Strand não havia internet café, lá pelas tantas eu encontrei um hotel e pedi para usar o computador e mandei e-mails para minha família e amigos dizendo que eu estava bem.
Depois de um mês trabalhando nesse lugar, a italiana me mandou embora. Disse que eu era muito devagar para o serviço. Eu não sabia para onde ir, então, o Mauro, um italiano que trabalhava comigo, me disse que eu deveria ir a Hannover, que lá tinha uma sorveteria grande na estação principal de trem e que sempre estavam precisando de gente. Eu peguei as minhas coisas e fui.
Chegando em Hannover, fiquei num albergue da juventude e no dia seguinte fui à sorveteria falar com o chefe e pedir emprego. Ele me aceitou. Eu poderia morar no apartamento dos funcionários, trabalharia de 10 a 12 horas por dia e teria um dia de folga por semana.
Eu trabalhava das 13 às 22 horas com meia hora de folga para as refeições. Meus pais vieram me visitar nessa época e ficaram desolados e tristes com a minha situação. Não entendiam por que eu estava fazendo aquilo, eu não precisava passar por isso.
Era muito duro, eu não tive resposta para dar-lhes, eu só tinha uma certeza: eu não queria voltar para o Brasil nem ir para qualquer outro lugar.
Então começou a Copa de 2002 e a Alemanha entrou em festa. Nessa época eu conheci dois brasileiros, o Plinio e o Aroldo, que foram comprar sorvete onde eu estava trabalhando. Eu os ouvi falando português e logo trocamos telefone e aí o mundo mudou para mim.
O Plinio e a Anja (namorada na época e agora esposa) me convidavam para sair, para assistir os jogos do Brasil, me apresentaram seus amigos alemães e eu passei a conhecer uma Alemanha divertida e receptiva.
Entretanto o trabalho continuava pesado e morar com os funcionários da sorveteria (8 pessoas ao total num apartamento) não estava bom. Através do Mauro, o italiano, fiquei sabendo que uma família amiga dele estava precisando de uma pessoa para trabalhar com eles. Lá eu viveria com a família, teria um quarto para mim, e a jornada de trabalho seria mais leve, já que a sorveteria ficava em Lübeck, uma cidade medieval no norte da Alemanha.
E lá fui eu novamente de mala e cuia para Lübeck.
Na casa da família Scussel fui muito bem recebida. O trabalho era também pesado, mas o clima era familiar, nós fazíamos as refeições juntos, tínhamos um certo lazer e hora de descontração.
Terminada a temporada de sorvete – os italianos fecham as sorveterias na Alemanha no começo do outono e voltam para a Itália, retornam no ano seguinte no início da primavera -, a família Scussel voltou para a Itália e eu liguei para o Plinio e perguntei se eu poderia passar uns dias lá.
Sem pensar duas vezes ele me disse: “claro, pode vir” e assim, ele e Anja me acolheram na sua casa e me ajudaram a organizar minha vida na Alemanha. Eu tinha decidido morar aqui.
Naquela época não havia smartphones, nem internet em todos os lugares, portanto não havia blogs, tutoriais, facebook ou instagram para dar dicas para começar a vida em outro lugar. Mas eu tinha o Plinio. Ele foi o meu tradutor, o meu tutorial. Ele me ajudou a organizar a minha vida, desde fazer o registro na prefeitura, arrumar o seguro saúde, abrir conta em banco, até procurar uma escola de alemão e um quarto em uma república.
E assim a minha vida foi tomando rumo. Eu conheci muitos alemães legais, que se interessavam pela minha história, que estavam dispostos a me ajudar, que me apresentaram as festas mais malucas em repúblicas, que me levaram para o carnaval em Colônia e Oktoberfest em Munique. Eu conheci de fato a vida na Alemanha, conheci uma liberdade que eu nunca tinha tido: a de ir e vir em segurança. De sair para a balada de bicicleta, de se libertar dos padrões de beleza impostos no Brasil, de ser quem você é, e ser respeitado e admirado por isso. Foi libertador.
Eu havia, finalmente, encontrado o meu lugar para viver.
O Christian eu conheci em maio de 2003, mas isso é um outro capítulo dessa história.
Agradeço imensamente à minha família que sempre me apoiou em todos os momentos da minha vida, mesmo sendo incompreensível os caminhos que eu tomei. Agradeço também a todos os meus amigos que me acompanham nessa linda, intensa e desafiadora aventura que é morar no exterior.
Larissa d’Avila da Costa, Gilching, março 2022